O Reflexo Vira Matéria

Começamos 2025 com um artigo que eu ja queria fazer a muito tempo. Em 2016 a Pinneaple lançou a primeira edição da cypher Poetas no Topo, e pra abrir esse projeto o rapper Makalister fez um verso que deixou todo mundo confuso e muito intrigado sobre o que ele queria dizer, pois era um verso complexo, cheio de metáforas, e com referências bem obscuras. Hoje eu resolvi trazer a minha interpretação desse verso, então venha comigo ver o que acontece quando o reflexo vira matéria.



Antes de entrar na minha análise dos versos eu queria dizer que existe mais ou menos uma explicação oficial dada pelo próprio Makalister que eu vou falar mais pra frente, e também existem vários artigos e vídeos com interpretações do verso, então a minha ideia é mesclar as interpretações que se alinham mais com a minha visão sobre o que o verso quer dizer mas principalmente tentar passar o que ele diz pra mim pessoalmente, e eu encorajo todos que estão lendo a escutar o verso e ter sua própria interpretação da obra. Então vamos lá:

O verso abre com a icônica frase que virou uma das mais repetidas do rap nacional na modernidade "O reflexo vira matéria, atinge a idade da invisível grade, a porta só abre por fora". Essa frase inicial é fundamental para entender exatamente o que o Makalister quer passar no seu verso, a partir do momento que você olha para o seu reflexo no espelho o que você enxerga vai virar a matéria, ou seja, vai virar realidade, se pensarmos em algo a visão que vamos ter desse algo é o que vai ser a nossa matéria, isso seria a nossa grade, a porta então só abriria por fora, a mudança só pode vir da cabeça do eu lírico para as reflexões e pensamentos que ele tem das coisas externas que ele vê e se tornam matéria em sua cabeça, apenas pegando essa realidade concebida na mente do eu lírico que ele tomou como verdade e vendo de outra perspectiva ele pode mudar ela.

"São noites de Cabíria, sob o céu do enigma, escondo no planeta algumas soluções de fácil uso". Noites de Cabíria é um filme Italiano de 1957 que inclusive ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro no ano seguinte da premiação, e no filme acompanhamos a Cabíria, uma jovem que se prostitui para viver e passa por várias desilusões ao longo do filme porém sem perder a sua coragem e o seu otimismo, e aqui o eu lírico faz uma comparação direta entre a personagem principal da obra e o seu estado atual (eu até achei que seria legal ver o filme pra falar dele aqui com mais profundidade mas eu não achei ele em lugar nenhum). Já a parte das soluções de fácil uso eu penso que é bem óbvio que é uma referência a drogas. Ele esconde no planeta soluções (drogas) que são muito fáceis de encontrar para lidar com os seus problemas, isso também vai ao encontro dessas "noites de Cabíria" que ele usa como metáfora para noites em que ele faz merda.

"Esbarro nos lábios brutos, arranhados como fracos vinis, yo, cansados de só ver navios, nas areias no templo. No sinal vermelho, para-brisa reflete, como eu posso me esconder de mim mesmo". Lábios brutos podem significar pessoas sendo duras com essa personagem, como também o desgaste dele com a vida que anda levando, vinis só ficam arranhados quando já estão muito usados, cansados, como diz a estrofe que segue essa, ele não quer mais estar parado na vida e pra simbolizar isso ele usa vários termos que significam estar parado em algum lugar, ver navios, areias do templo e estar em um sinal vermelho. Já a parte do para-brisa volta a ideia inicial do reflexo virar matéria, quando ele olha o seu reflexo no para-brisa ele não pode se esconder da visão que ele tem dele mesmo, e isso vai fazer mais sentido quando a gente chegar na explicação do próprio Makalister sobre o verso.

"Sol mostarda, viver atrasa, Sexta-feira em casa, na cabeça 'Não Amarás' e 'Decálogo'. Paredes falam muito sobre mim e sobre os vacilos que eu ando cometendo, a pureza decola no trânsito lento". Essa personagem está na sexta-feira, um dia conhecido como um dia para sair e se divertir, na sua casa sozinho, e lá as paredes que são seus pensamentos estão martelando em sua cabeça, com ele voltando a analogia do trânsito e sinal vermelho para simbolizar a sua vida se esvaindo naquela sexta. Decálogo é uma mini série Polonesa de 1988 que em 10 episódios procuram explorar os dez mandamentos da bíblia, dois desses pecados depois foram expandidos para filmes, Não Matarás e Não Amarás, todos eles dirigidos por Krzysztof Kieslowski, um cineasta que o Makalister gosta tanto que já foi seu nome de perfil em suas redes sociais. Isso poderia ser ele tentando ver um "filme de conforto" na sua cabeça durante essa sexta, mas não conseguindo por causa das "paredes" falando sobre ele e ele não conseguindo ignorar. 

"E o pensamento no Ettore Scola, as coisas perdem suas cores agora. Eu não fui e não vi, os detalhes preferi nem saber, gastei uns minutos no bar e nem pensei em morrer, porque viver não se pensa, ao menos não vale o esforço". Ettore Scola foi um cineasta italiano bem renomado, e perder as cores poderia ser tanto o fato dos seus filmes serem em preto e branco, como naquela sexta as coisas estarem perdendo a cor para ele, figurativamente no seu ânimo mas também com a noite chegando. Ele então cita algum acontecimento que ele soube mas preferiu nem saber os detalhes, e que ele foi ao bar gastar uns minutos para se distrair e não pensar em morrer, e para mim essa é uma das linhas que mais escancara a tristeza dessa personagem em torno da sua vida. Ele continua falando que quando você pensa demais você não está vivendo, e é o que ele faz esse verso todo, analisando excessivamente a sua própria vida.

"Vale o que expira, o que sobra do ser, botar na tela o sangue da carne ambulante. Ser a latência, jamais operado pelo sonho de alguém". Esse é o final do verso e para mim ele é uma ligação com a parte das noite de Cabíria, porque aqui ele fala o que vale da vida, esse verso, tudo que ele conseguiu tirar de ruim dessa época da sua vida para fazer essa poesia é ele tirando o sangue da sua carne ambulante e jogando na sua tela para nós, então quando ele "expirar" ou seja morrer, teremos pelo menos a sua arte para apreciar e isso pelo menos vai ser alguma coisa, mostrando um otimismo sobre o que ele vai deixar como arte, assim como a personagem do filme.


Agora depois de explicar o que eu acho que significa cada verso da música eu vou trazer o mais próximo que a gente tem da explicação oficial do Makalister sobre esse verso, que foi quando o artista Faustino fez sua própria teoria no Facebook sobre o verso e o Makalister respondeu onde ele teve a ideia para o verso, e depois disso eu vou usar a morte do autor para fazer a minha própria conclusão sobre o verso e o que eu tirei dele.





É louco pensar de onde vem as inspirações para as coisas, o cara estar virado de uma noite e se olhar no capô de um carro e disso vir a inspiração para ele fazer um dos versos mais icônicos e complexos do rap nacional. Como eu disse a parte do para-brisa agora faz muito mais sentido, nao foi um para-brisa mas ainda assim ele viu o reflexo dele no capô do carro e isso causou uma grande reflexão, quando você tá muito doido em um rolê as vezes você nem ta enxergando o que você está fazendo, mas o ato de você ver o seu reflexo te trás um pouco pra realidade e faz você refletir o que te trouxe até aquele momento, eu já tive vários rolês em que em determinado momento eu me perguntei "como as coisas escalonaram pra isso???" e essa é provavelmente a reflexão que o Makalister teve na hora e motivou ele a escrever esse verso cheio de metáforas sobre aquele momento específico em que ele se viu no capô.


Agora a minha interpretação sobre esse verso é de uma pessoa que está se sentindo estagnada na vida, não precisa ser necessariamente por causa de uma depressão, mas talvez um sentimento de melancolia, várias vezes durante o verso você tem metáforas sobre estar parado, e a pessoa não consegue deixar erros do passado irem então mesmo que ela tente se distrair com filmes que gosta ou até gastando uns minutos no bar esses erros voltam para assombrar ela, o que a gente pode interpretar como as paredes falando sobre ele. Eu inclusive acho genial que em nenhum momento do verso o eu lírico entra em detalhes sobre quais são esses vacilos que ele anda cometendo, deixa tudo mais universal, ambíguo, pode ter sido algo muito grande como um término de relacionamento como também pode não ter sido nada especial, apenas um acúmulo de coisas. Então essa personagem vive noites de Cabíria, cheias de momentos loucos, desilusões, frustrações, mas com um otimismo de que tudo isso leve a algo bom no final, como a inspiração que essas noites podem trazer para a sua arte. Para mim esse verso é incrível porque ele te passa um sentimento, a primeira vez que eu ouvi eu não entendi nada, mas ele me passou um sentimento de desorientação, confusão, melancolia, como se eu estivesse na pele da pessoa que estava fazendo o verso, e cada vez que eu ouvia ele mais e mais eu ia entendendo algo novo sobre ele até eu conseguir fazer a minha própria interpretação que funciona pra mim do verso como um todo. Provavelmente o Makalister tem uma visão bem diferente e talvez tenha coisas que se liguem com essas obras que ele cita durante o verso e eu nunca vi, mas isso é a beleza da arte, as várias formas de olhar ela, talvez até o próprio artista hoje olhe para ela de outra forma anos depois do lançamento, o que importa é que abrindo essa cypher que foi tão importante para o rap nacional e o movimento do ano lírico em 2017 o Makalister realmente se mostrou um poeta no topo do seu jogo lírico.

Enfim, essa é a minha análise do verso do Makalister, eu amo não só esse verso mas como todo o Poetas no Topo 1, eu poderia escrever um artigo sobre cada verso daquela cypher (principalmente o do Sant), e se eu achar mais alguns versos que eu ache que vale a pena destrinchar eu posso fazer disso um quadro próprio no blog. O blog já volta às atividades em Janeiro porque eu já to com outro post engatilhado na minha cabeça, até lá, se cuidem, e escutem Makalister, todo o trabalho solo dele é sensacional também, inclusive vou deixar um aqui pra terminar o artigo.


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