Ninguém está rezando por Kendrick Lamar em DAMN.

Eu estava dando uma volta na minha rua outro dia quando eu vi uma senhora cega que parecia estar procurando algo, ela parecia muito frustrada, então eu me aproximei dela e perguntei "a senhora esta procurando algo que perdeu?" e ela me respondeu "sim, você perdeu a sua... espera você não é aquele cara que escreve naquele blog de música? você deveria escrever algo sobre o álbum DAMN. do Kendrick Lamar" e aqui estou eu.


Em 2015 Kendrick Lamar alcançou o status que ele tanto dizia já estar em suas letras com o lançamento da sua obra prima To Pimp a Butterfly, um clássico moderno que não apenas é considerado como um dos melhores álbuns de rap de todos os tempos como para muitos é o melhor álbum da década de 2010. Mas depois de um clássico instantâneo ser feito fica sempre a pergunta do "e depois?" na mente de todos, Kendrick seguiria na linha de jazz rap da sua obra de arte de 2015??? ele iria voltar para o rap gangsta autocritico do Good Kid Maad City??? a resposta veio em 2017 e ele não fez nada do que ele havia feito antes, ele fez um álbum enigmático, moderno e que fez todo mundo dizer... DAMN. Esse é um álbum em que na época que ele foi lançado abriu um gigantesco debate sobre o significado dele, era para ele ser escutado ao contrário como uma história de trás para frente??? o que quer dizer a senhora dando um tiro no Kendrick na primeira faixa da música??? onde o personagem do Kung Fu Kenny entra nisso tudo??? mas para mim tem um tema central que sempre me chamou mais atenção do que tudo nesse álbum: a ideia de ninguém estar rezando pelo personagem principal e como ele lida com isso.

Como eu já falei o álbum começa com o Kendrick vendo uma senhora cega na rua que parece estar procurando algo que perdeu, ele oferece ajuda e toma um tiro dela, mas antes disso tudo acontecer o álbum realmente se inicia com uma voz dizendo "é maldade? é fraqueza? você decide, vamos viver ou morrer?" e esse inicio é a chave para entender os principais conceitos que esse álbum toca. A primeira música mesmo desse disco é DNA e ela é um grito de raiva e ao mesmo tempo uma ostentação de tudo que faz ele ser ele, todos os aspectos bons e ruins da sua persona com trechos de comentários da Fox News sobre ele com o rapper jogando todas essas criticas da mídia e elogios dos seus fãs como parte do seu DNA com uma confiança inabalável, colhendo os frutos da sua fama alcançada com seus trabalhos passados, mas essa confiança não duraria muito. YAH é a próxima música e ela é quase o exato oposto da DNA com uma vibe muito mais calma e o rapper refletindo se toda essa fama vale a pena ou não, será que ele não está trabalhando demais??? será que se ele parar de trabalhar tudo isso não vai desaparecer??? esses são alguns questionamentos de um Kendrick confuso sobre o seu destino, tão confuso que o nome da próxima música YAH é o que as pessoas acreditam que é o nome mais próximo para Deus em hebraico mas nessa mesma música ele diz que não é uma pessoa religiosa de forma nenhuma.
  

A primeira música em que a frase "ninguém esta rezando por mim" aparece é em ELEMENT e é logo no inicio da música seguido de um "eu quero que se foda" e esse é o tema central de ELEMENT sendo basicamente uma resposta ao Kendrick se questionando em YAH com ele basicamente dizendo "ninguém esta rezando por mim??? eu não dou a mínima, minha vó era a única que rezava por mim e ela morreu??? eu não dou a mínima, eu posso morrer com essa vida??? eu não dou a mínima eu sou o melhor rapper vivo nesse momento", é uma música de ostentação da persona do Kendrick ou o Kunf Fu Kenny como ele continua chamando a si mesmo no álbum ainda maior que DNA, é o grande pico de euforia do rapper. Mas então esse pico acaba e em FEEL ele repete a frase "ninguém esta rezando por mim" mas dessa vez o seu tom de voz não é mais desafiador como na música anterior, mas sim um tom de tristeza, como se esse fato de ninguém star rezando por ele estivesse acertando ele em cheio pela primeira vez e ele estivesse vendo as consequências que essa frase implica, com FEEL sendo quase uma sessão de terapia com ele falando tudo o que ele sente sobre si mesmo e sobre as pessoas em volta dele. A música seguinte é LOYALTY que é uma love song com a Rihanna, claramente ela foi feita para ser um single para vender, mas ela continua um tema muito importante de FEEL, se ninguém esta rezando por Kendrick logo ele não tem a lealdade de ninguém, nem na sua família e nem na indústria da música, e logo esse sentimento de que é isso que ele precisa é o que começa a dominar a sua mente. O rapper claramente precisa de ajuda, precisa de pessoas leais ao seu lado mas tem um problema: o orgulho, por todo esse álbum vemos como Kendrick é orgulhoso e fala de si mesmo como o melhor rapper vivo, e isso é ressaltado na música seguinte chamada PRIDE, onde a voz de inicio fala "o amor é o que vai te matar, mas o orgulho é o que vai ser a morte sua e minha" com o rapper refletindo se em um mundo perfeito ele não tivesse tanto orgulho, até chegar na conclusão de que provavelmente esse mundo não existe, já que ele não pode fingir humildade só porque as outras pessoas ao seu redor são inseguras.
    

Em HUMBLE Kendrick mais uma vez grita a frase "ninguém esta rezando por mim" dessa vez com um tom de contentamento, como se ele tivesse aceitado esse fato e apenas estivesse convivendo com isso. Na música que funciona como um rap de ostentação o Kendrick ao mesmo tempo em que desafia a ideia de ser humildade listando todas as razões pelas quais ele é melhor que todos os outros rappers no momento também flerta com a ideia de humildade que é tão difícil para ele, mandando todos os outros rappers do jogo serem mais humildes mas também mandando ele mesmo ser mais humilde. LUST e LOVE são músicas que contrastam mais uma vez a facilidade que Kendrick tem para reconhecer seus problemas e a dificuldade em que ele tem em sair deles, com ele falando sobre a luxuria que ele tem não apenas em prazeres sexuais mas com a fama e todo o poder que ele pode ter, porém admitindo que essa luxuria aos poucos está se transformando em medo, enquanto em LOVE mais uma vez as fraquezas do rapper são expostas com ele cantando uma música romântica para a sua esposa mas que também tem questionamentos de se ela ainda amaria ele se ele não fosse essa super estrela do rap. XXX é mais uma música politica (estávamos na era Trump) mas tem uma parte muito interessante nela com o Kendrick falando sobre um amigo que perdeu o filho por causa de uma divida e pedindo para Kendrick lhe dar um conselho e... rezar por ele, mas tudo que o rapper faz é dizer que se fosse alguém da sua família ele mataria a pessoa e ainda dizia para todos que foi ele, pintando essa imagem agressiva até cortar o verso abruptamente dizendo que tem que falar em uma convenção, para então sermos levados para essa convenção onde o rapper está falando justamente sobre o controle de armas americano e pedindo para qualquer pessoa rezar por ele, mostrando mais uma vez a dualidade desse homem completamente perdido dentro de si mesmo.


Para encerrar o álbum temos as três ultimas músicas, a antepenúltima e penúltima sendo FEAR e GOD que se complementam e basicamente explicam e encerram os temas desse álbum. FEAR abre com o primo do Kendrick Duckworth mandando uma mensagem de áudio para ele falando sobre o medo que Kendrick tem de ninguém estar rezando por ele, mas explicando que eles são pessoas amaldiçoadas, isso liga com uma linha de YAH que Kendrick diz ser israelita, que na história são pessoas que recebem maldições e loucuras em suas vidas até elas encontrarem o caminho certo e abraçarem quem elas realmente são. Então Kendrick fala sobre três épocas da sua vida e os medos que ele sentia nos três versos da música, aos 7 anos ele tinha medo da sua mãe que o ameaçava fisicamente se ele fizesse algo errado dizendo que ele respeitaria ela pelo medo, aos 17 ele tinha medo de morrer em algum tiroteio causado pelo seu bairro violento e seu estilo de vida, e aos 27 já famoso e uma estrela seu medo é perder tudo, acreditando que Deus só Deus tudo aquilo para ele como uma forma de piada doentia para então tirar tudo dele, lembrando que ele acredita estar sendo maldiçoado. E então a música conclui com o resto da mensagem do seu primo transmitindo pensamentos positivos e encerrando dizendo "eu amo você, a família, e eu estou rezando por você, Deus te abençoe, shalom". GOD é o encerramento do álbum sendo uma resposta a mensagem do seu primo, com ele escolhendo viver de acordo com a vontade de Deus para não se sentir amaldiçoado mais, ou seja ele escolhe a fraqueza ao invés da maldade, a humildade ao invés do orgulho, com ele reconhecendo todas as coisas ruins que ele fez em sua vida e os seus sentimentos negativos sobre tudo para tentar alcançar uma salvação além do dinheiro, da fama e do rap, é o final feliz certo??? talvez, antes do álbum acabar temos mais uma música. DUCKWORTH fecha o álbum e ela é a música mais enigmática desse álbum todo, porque ela não é uma música sobre sentimentos, na verdade ela nem é sobre o Kendrick, ela é uma história sobre o pai do Kendrick, aqui chamado de Ducky, que quando Kendrick ainda era criança trabalhava em um KFC, somos então apresentados a outro personagem chamado Anthony que era uma figura conhecida do crime local ali. Certo dia Anthony foi ao KFC que o pai de Kendrick trabalhava não com a intenção de comer mas sim de roubar aquele estabelecimento, o pai de Kendrick sabia disso porque conhecia Anthony das redondezas e Anthony já ouvia roubado aquele mesmo KFC anos atrás e inclusive atirado em um funcionário de lá, é então que Ducky tem a ideia de dar frango de graça para Anthony toda vez que ele fosse lá, tentando assim fazer amizade com ele para que ele não roubasse o lugar, e acredite ou não isso funcionou, ele nunca assaltou aquele lugar. Ducky era o pai de Kendrick, mas quem era Anthony??? bem, Anthony se tornaria ninguém menos que Anthony "Top Dawg" Fiffity, fundador da gravadora TDE onde o Kendrick assinaria no futuro, e 20 anos depois o pai de Kendrick e o Anthony se encontraram e começaram a dar risada pois eles perceberam que se o Anthony tivesse roubado aquele lugar e matado o pai de Kendrick, ele teria pegado prisão perpétua, Kendrick cresceria sem pai e provavelmente teria ido para o caminho do crime onde ele teria morrido baleado. É então que ouvimos um som de disparo, junto com um barulho de rebobinação do álbum todo e então ouvimos a voz de Kendrick dizendo "eu estava dando uma volta outro dia", e assim o álbum se encerra.


Existem um monte de teorias sobre o que o final desse álbum significa, eu não vou passar por todas elas, mas eu vou falar a minha interpretação pessoal que combina com os temas que foram apresentados no álbum. O tema central que á apresentado na primeira faixa é a maldade ou a fraqueza, e para mim toda a história presente em DUCKWORTH representa um conflito que não foi resolvido pela maldade, pelo contrário, o pai de Kendrick poderia ter tentado resolver a tentativa de assalto pela violência e piorado as coisas, mas ele reconheceu a sua fraqueza e bolou um plano pacifico para solucionar aquela situação que poderia ter acabado em morte, assim ele quebra a maldição sobre o seu filho que poderia ter crescido sem pai e ser mais uma vitima de violência nas ruas, e o retorno a BLOOD, a primeira música do álbum, é o que poderia ter acontecido com Kendrick caso a maldade tivesse prevalecido sobre a fraqueza, um Kendrick morto em uma emboscada ao tentar ajudar uma mulher cega que estava lá apenas para mata- lo. 


Quando DAMN foi lançado ele foi aclamado como um dos melhores lançamentos de 2017, ele ganhou inúmeros prêmios de álbum do ano, ficou em primeiro várias listas de fim do ano, e ganhou nada menos nada mais que um Pulitzer pelo seu trabalho nesse álbum, sendo o primeiro artista de música popular da história a conseguir vencer essa premiação. Porém alguns meses depois a reação geral com esse disco foi que ele não era uma obra prima ao nível de To Pimp a Butterfly, que era superestimado, e que o Kendrick estava se vendendo para o mainstream, e sinceramente essa reação não me surpreendeu. Acho que não é uma opinião impopular dizer que o Kendrick adaptou o som de DAMN para tentar levar o grammy de álbum do ano (que ele não levou porque o Grammy é racista) com beats bem mais modernos puxando para o lado do trap em contraste com o jazz rap do seu trabalho anterior, mas principalmente eu acho que as pessoas não quiseram se dar ao trabalho de tentar entender esse álbum, To Pimp a Butterfly é uma história  mais simples de ser entendida, o Kendrick como um homem negro entrando cada vez mais fundo na fama e vendo como alguém como ele é tratado por ela, é uma história linear com começo, meio e fim, seu álbum antes de TPAB Good Kid Maad City por mais que seja uma história fora de ordem nas faixas sobre a vida de Kendrick antes da fama, ainda assim é uma história, já DAMN é um álbum sobre sentimentos, inseguranças, você decide sobre o que ele é, como esta dito na primeira faixa "você decide, vamos viver ou morrer?" e a partir do momento em que o rapper disse que não explicaria o álbum e deixaria as pessoas teorizarem sobre ele eu acho que o interesse geral das pessoas por esse álbum foi morrendo e morrendo, mas para mim ele ser tão abstrato em seus temas enquanto consegue ter uma sonoridade tão mainstream e ser responsável pelos maiores hits da carreira do Kendrick com HUMBLE, LOYALTY e LOVE faz dele não apenas uma das obras mais interessantes do rap moderno como é um trabalho que para mim merece uma nota dez, eu tive a ideia de escrever sobre ele no ano passado quando eu ouvi ele novamente, esse ano eu já ouvi ele 3 vezes e eu tenho certeza que ele vai continuar tocando na minha vida pelos próximos anos.

E essas são as minhas visões sobre esse álbum que foi tão importante para a minha entrada no rap lá nos longínquos 2017, e para qualquer pessoa que leu até aqui eu vou deixar uma pergunta: alguém anda rezando por você ultimamente??? até o próximo artigo.   

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